Oi, povo de Burns!
Saudade de vocês...
Então, trago aqui um conto que escrevi visando mandar para uma antologia, mas que deu errado, já que, quando vi, já tinha fechado o prazo para envios de contos... Porém, para não deixá-lo abandonado às traças do meu computador, resolvi mostrá-lo para vocês. Quero saber suas opiniões, hein!
Boa leitura!
A alegria e a dor têm o mesmo sabor com você
M. L. Bastilho
Era tua a foto que coloquei naquela caixa. Eram teus os fios de cabelo que também ali guardei e era teu o nome que escrevi em papel vermelho, mas foram as minhas mãos que se sujaram de terra ao enterrar a caixa com tudo que continha. Coisas tuas que desejava que fossem também minhas. Coisas que queimei apenas porque mandava o ritual.
O relógio no pulso indicava três horas da manhã e a encruzilhada em que me encontrava era silenciosa e opressora como o fundo do mar. Não tinha medo. Fazia o que deveria ser feito para te ter. Não havia mais escolha.
Uma brisa quente raspou o colarinho da minha blusa, arrepiando a pele e jogando meu cabelo para frente. Foi como um bafo, mas possuía perfume de rosas.
– Pequena – o bicho me chamara. Seus olhos eram amarelos e pele esverdeada, quase escamosa. Conseguia ser belo ao mesmo tempo em que me aterrorizava.
Não sabia como responder, me curvei como em uma oração e pedi:
– Por favor, por favor, me ajude.
– O que queres?
– Amor – respondi humilde.
– Amor? – o bicho gargalhara revelando presas no lugar de dentes e uma língua bifurcada. – Queres mesmo perder tua alma por amor? Por que não pedes dinheiro, fama, poder, imortalidade?
– Nada disso me faria feliz.
– Como podes saber se não os possui? – sua voz era tentadora e me faria aceitar qualquer coisa que me desse. Mas não. Eu te queria e era por isso que estava ali.
– Eu preciso dele para viver.
Mais uma gargalhada indicara o quanto desprezível eu parecia. Não me importava. Era a verdade. Eu precisava de ti para viver e ainda preciso. Sempre precisei.
– Parece que falas sério – a criatura disse como se tivesse piedade da minha alma – Mas sabes, não sabes, que durará apenas dez anos?
– Dez anos com ele é melhor do que uma vida inteira sem ele.
Aquele demônio apenas assentiu com um suspiro. Parecia que eu já não tinha mais solução, estava perdida e ele se apenava disso. Eles não devem adorar esse tipo de gente, esse tipo de desespero?
Tu eras a causa do meu desespero, porém, logo seria também a causa da minha alegria.
Selamos nosso acordo com um beijo. Aquela língua ofídia lambeu meus lábios e um gemido involuntário escapou da minha garganta.
Aquela fora a única vez que te traí, meu amor, mas entendes por que, não entendes? Era preciso.
Tu tinhas que ser meu.
Nem o bicho falara e nem eu perguntara o que aconteceria conosco quando nosso tempo acabasse.
Ainda naquela noite, apareceras em casa, de joelhos, implorando perdão e jurando amor eterno. Havia deslumbramento encantado nos olhos que sempre amei. Quando me pediras em casamento, algum tempo depois, eu pulara e gritara ao mundo “sim, sim, sim”.
No decorrer do tempo, acabei esquecendo-me do acordo. Perdida na felicidade de nossa vida juntos, esqueci o que tinha feito para te ter. Amávamos-nos tanto e todos invejavam nosso amor. As mulheres me perguntavam o que tinha feito para te ter e eu apenas sorria, sorria e sorria feliz.
Eu te tinha e acreditava que te tinha porque tu me amavas.
Aquela manhã, quando tu não apareceste, e saí a tua procura, nem passava pela minha cabeça que nosso tempo estava acabando. Quando te encontraste, encolhido em um canto longe de mim, e me olhaste como não sabendo quem eu era ou por que estava comigo, tudo o que pensava era que tu estavas confuso. Apenas isso.
Nas noites em que não dormiste, sentado ao meu lado na cama, olhos turvos perdidos em um mundo distante, desejei que a fase passasse e voltássemos a ficar bem.
Quando, no carro, ficavas por quase uma hora antes de entrares em casa, ficava eu ali na janela, te olhando, me perguntando se deveria ou não ir até a ti e beijar-te aos lábios, pulsos, mãos, corpo inteiro e implorar perdão por não sermos mais felizes.
A primeira briga foi para mim como pólvora quente atingindo órgão vital. Tentei te abraçar e recebi empurrões, “me deixa em paz, me deixa em paz”. Lágrimas queimavam meu rosto e tu ignoraste cada uma delas.
Foi nesta noite em que os cães apareceram. As cobertas foram puxadas pelo lado em que tu costumavas dormir e que agora estava frio e vazio. Não sabia mais onde tu dormias.
No começo, pensei que se tratava de ti me dando uma surpresa como antigamente fazia, quando puxava o lençol me descobrindo, tocava de leve minha pele que arrepiava a teu toque e, inconscientemente, ainda sonhando, eu arqueava meu corpo para encontrar ao teu, sentindo-te preparado para mim. Tua respiração quente contra meu perfume... Naquela noite, os olhos eram vermelhos e a respiração era canina.
O pelo era grosso em meus dedos e não era teu. Pulei para trás, batendo as costas na parede gelada e gritei.
Nem assim tu apareceste.
O cão negro ficou no quarto a noite toda, apenas me olhando, encarando, a língua pendendo para fora da boca. O bafo quente chegava até a mim e cheirava a morte.
Resolvi voltar àquela encruzilhada e resolver o problema. Sentia a esperança de que se pedisse, a criatura me escutaria... Me daria mais dias felizes ao teu lado.
Eu sentia tanto a tua falta que era como se tivesse sofrido um aborto e te perdido. Perdido em sangue o que vivia dentro de mim sempre pulsando.
Dessa vez, foi minha foto a que coloquei na caixa. Arranquei meus próprios fios de cabelo sem sentir dor. Escrevi meu próprio nome em papel vermelho.
Me ajoelhei na terra às três da manhã e esperei.
– Pequena, voltaste – a criatura que apareceu não era a mesma. Não tinha a mesma forma. A forma era a do cachorro.
– Por favor, por favor – chorava eu aos pés do cão – Tu me roubaste dias e dias que deveriam ser de felicidade e foram apenas de angustia e tristeza!
– Ninguém aqui disse que o fim seria bonito.
– Mas eu pagarei por dez anos e não tive tudo isso.
– Tiveras o que querias, não tiveras?
– Sim... Mas hoje ele me odeia! Quase como se soubesse o que eu fiz!
Até aquela noite, nunca tinha visto um cão rir, mas o bicho riu. Jogando sua baba quente em mim.
– Volta para casa, pequena, e aproveita o tempo que tens.
E foi o que fiz.
Só não sabia o que encontraria quando chegasse. A casa que construímos com tanto sacrifício e, nunca deixando de sorrir mesmo nas dificuldades, estava em chamas. A fumaça preta ganhava o ar e meus pulmões. Tu assistias à cena sem piscar ou mexer-te para conter aquele fogo.
O que tínhamos virava cinzas bem na nossa frente e éramos fracos demais para impedir.
– Meu amor, o que faremos? – pedi na ingenuidade de que ainda me amavas. Foi quando vi o que trazias na mão. Contra o fogo, a lâmina brilhava como brilhávamos quando nos beijávamos ao sol. O calor que eu sentia na hora era quase o mesmo.
Não falaste, porém nem preciso foi. Em teus olhos eu lia o que queria me dizer: queria que te devolvesse a vida que roubei. Queria que eu te devolvesse tuas escolhas, sonhos. Toda tua juventude.
Tu apenas querias destruir o demônio que eu havia me tornado para ti.
– Eu só te amo – disse quando te aproximara feito felino em passos precisos – Eu só te amo. Eu só te amo.
Continuei dizendo que te amava até quando a primeira facada atingiu minha carne. Meu sangue sujou tuas mãos que já me tocaram com ternura, paixão e amor. Amor. Continuei dizendo que te amava enquanto morria pelo teu próprio punho porque tu e apenas tu tinhas esse direito.
As chamas que vi antes de sair de mim, foram as mesmas que me receberam quando acordei sentindo a língua bifurcada lamber minhas feridas.
– Agora pegarei o que é meu – disse a voz canina, ofídia, terrível.
E eu te perdi, meu amor. Eu te perdi.
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