domingo, 19 de maio de 2013

FORA DE BURNS - UM CONTO SEM VAMPIROS


Oi, povo de Burns!
Saudade de vocês...
Então, trago aqui um conto que escrevi visando mandar para uma antologia, mas que deu errado, já que, quando vi, já tinha fechado o prazo para envios de contos... Porém, para não deixá-lo abandonado às traças do meu computador, resolvi mostrá-lo para vocês. Quero saber suas opiniões, hein!
Boa leitura!

A alegria e a dor têm o mesmo sabor com você

M. L. Bastilho 


Era tua a foto que coloquei naquela caixa. Eram teus os fios de cabelo que também ali guardei e era teu o nome que escrevi em papel vermelho, mas foram as minhas mãos que se sujaram de terra ao enterrar a caixa com tudo que continha. Coisas tuas que desejava que fossem também minhas. Coisas que queimei apenas porque mandava o ritual.
O relógio no pulso indicava três horas da manhã e a encruzilhada em que me encontrava era silenciosa e opressora como o fundo do mar. Não tinha medo. Fazia o que deveria ser feito para te ter. Não havia mais escolha.
Uma brisa quente raspou o colarinho da minha blusa, arrepiando a pele e jogando meu cabelo para frente. Foi como um bafo, mas possuía perfume de rosas.
– Pequena – o bicho me chamara. Seus olhos eram amarelos e pele esverdeada, quase escamosa. Conseguia ser belo ao mesmo tempo em que me aterrorizava.
Não sabia como responder, me curvei como em uma oração e pedi:
– Por favor, por favor, me ajude.
– O que queres?
– Amor – respondi humilde.
– Amor? – o bicho gargalhara revelando presas no lugar de dentes e uma língua bifurcada. – Queres mesmo perder tua alma por amor? Por que não pedes dinheiro, fama, poder, imortalidade?
– Nada disso me faria feliz.
– Como podes saber se não os possui? – sua voz era tentadora e me faria aceitar qualquer coisa que me desse. Mas não. Eu te queria e era por isso que estava ali.
– Eu preciso dele para viver.
Mais uma gargalhada indicara o quanto desprezível eu parecia. Não me importava. Era a verdade. Eu precisava de ti para viver e ainda preciso. Sempre precisei.
 – Parece que falas sério – a criatura disse como se tivesse piedade da minha alma – Mas sabes, não sabes, que durará apenas dez anos?
– Dez anos com ele é melhor do que uma vida inteira sem ele.
Aquele demônio apenas assentiu com um suspiro. Parecia que eu já não tinha mais solução, estava perdida e ele se apenava disso. Eles não devem adorar esse tipo de gente, esse tipo de desespero?
Tu eras a causa do meu desespero, porém, logo seria também a causa da minha alegria.
Selamos nosso acordo com um beijo. Aquela língua ofídia lambeu meus lábios e um gemido involuntário escapou da minha garganta.
Aquela fora a única vez que te traí, meu amor, mas entendes por que, não entendes? Era preciso.
Tu tinhas que ser meu.
Nem o bicho falara e nem eu perguntara o que aconteceria conosco quando nosso tempo acabasse.
Ainda naquela noite, apareceras em casa, de joelhos, implorando perdão e jurando amor eterno. Havia deslumbramento encantado nos olhos que sempre amei. Quando me pediras em casamento, algum tempo depois, eu pulara e gritara ao mundo “sim, sim, sim”.
No decorrer do tempo, acabei esquecendo-me do acordo. Perdida na felicidade de nossa vida juntos, esqueci o que tinha feito para te ter. Amávamos-nos tanto e todos invejavam nosso amor. As mulheres me perguntavam o que tinha feito para te ter e eu apenas sorria, sorria e sorria feliz.
Eu te tinha e acreditava que te tinha porque tu me amavas.
Aquela manhã, quando tu não apareceste, e saí a tua procura, nem passava pela minha cabeça que nosso tempo estava acabando. Quando te encontraste, encolhido em um canto longe de mim, e me olhaste como não sabendo quem eu era ou por que estava comigo, tudo o que pensava era que tu estavas confuso. Apenas isso.
Nas noites em que não dormiste, sentado ao meu lado na cama, olhos turvos perdidos em um mundo distante, desejei que a fase passasse e voltássemos a ficar bem.
Quando, no carro, ficavas por quase uma hora antes de entrares em casa, ficava eu ali na janela, te olhando, me perguntando se deveria ou não ir até a ti e beijar-te aos lábios, pulsos, mãos, corpo inteiro e implorar perdão por não sermos mais felizes.
A primeira briga foi para mim como pólvora quente atingindo órgão vital. Tentei te abraçar e recebi empurrões, “me deixa em paz, me deixa em paz”. Lágrimas queimavam meu rosto e tu ignoraste cada uma delas.
Foi nesta noite em que os cães apareceram. As cobertas foram puxadas pelo lado em que tu costumavas dormir e que agora estava frio e vazio. Não sabia mais onde tu dormias.
No começo, pensei que se tratava de ti me dando uma surpresa como antigamente fazia, quando puxava o lençol me descobrindo, tocava de leve minha pele que arrepiava a teu toque e, inconscientemente, ainda sonhando, eu arqueava meu corpo para encontrar ao teu, sentindo-te preparado para mim. Tua respiração quente contra meu perfume... Naquela noite, os olhos eram vermelhos e a respiração era canina.
O pelo era grosso em meus dedos e não era teu. Pulei para trás, batendo as costas na parede gelada e gritei.
Nem assim tu apareceste.
O cão negro ficou no quarto a noite toda, apenas me olhando, encarando, a língua pendendo para fora da boca. O bafo quente chegava até a mim e cheirava a morte.
Resolvi voltar àquela encruzilhada e resolver o problema. Sentia a esperança de que se pedisse, a criatura me escutaria... Me daria mais dias felizes ao teu lado.
Eu sentia tanto a tua falta que era como se tivesse sofrido um aborto e te perdido. Perdido em sangue o que vivia dentro de mim sempre pulsando.
Dessa vez, foi minha foto a que coloquei na caixa. Arranquei meus próprios fios de cabelo sem sentir dor. Escrevi meu próprio nome em papel vermelho. 
Me ajoelhei na terra às três da manhã e esperei.
– Pequena, voltaste – a criatura que apareceu não era a mesma. Não tinha a mesma forma. A forma era a do cachorro.
– Por favor, por favor – chorava eu aos pés do cão – Tu me roubaste dias e dias que deveriam ser de felicidade e foram apenas de angustia e tristeza!
– Ninguém aqui disse que o fim seria bonito.
– Mas eu pagarei por dez anos e não tive tudo isso.
– Tiveras o que querias, não tiveras?
– Sim... Mas hoje ele me odeia! Quase como se soubesse o que eu fiz!
Até aquela noite, nunca tinha visto um cão rir, mas o bicho riu. Jogando sua baba quente em mim.
– Volta para casa, pequena, e aproveita o tempo que tens.
E foi o que fiz.
Só não sabia o que encontraria quando chegasse. A casa que construímos com tanto sacrifício e, nunca deixando de sorrir mesmo nas dificuldades, estava em chamas. A fumaça preta ganhava o ar e meus pulmões. Tu assistias à cena sem piscar ou mexer-te para conter aquele fogo.
O que tínhamos virava cinzas bem na nossa frente e éramos fracos demais para impedir.
– Meu amor, o que faremos? – pedi na ingenuidade de que ainda me amavas. Foi quando vi o que trazias na mão. Contra o fogo, a lâmina brilhava como brilhávamos quando nos beijávamos ao sol. O calor que eu sentia na hora era quase o mesmo.
Não falaste, porém nem preciso foi. Em teus olhos eu lia o que queria me dizer: queria que te devolvesse a vida que roubei. Queria que eu te devolvesse tuas escolhas, sonhos. Toda tua juventude.
Tu apenas querias destruir o demônio que eu havia me tornado para ti.
– Eu só te amo – disse quando te aproximara feito felino em passos precisos – Eu só te amo. Eu só te amo.
Continuei dizendo que te amava até quando a primeira facada atingiu minha carne. Meu sangue sujou tuas mãos que já me tocaram com ternura, paixão e amor. Amor. Continuei dizendo que te amava enquanto morria pelo teu próprio punho porque tu e apenas tu tinhas esse direito.
As chamas que vi antes de sair de mim, foram as mesmas que me receberam quando acordei sentindo a língua bifurcada lamber minhas feridas.
– Agora pegarei o que é meu – disse a voz canina, ofídia, terrível.
E eu te perdi, meu amor. Eu te perdi.

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