Prólogo
Ele já havia perdido tudo: inocência, riqueza, felicidade, vida...
Não poderia perdê-la agora que a encontrou. Ela era parte dele. Seu sangue. Seu coração. Sua alma.
Mas ele sabia que não poderia tê-la, era sujo, era errado, era... Bom.
E sabia que tudo que era bom, era tirado dele. Tirado da pior maneira possível, era arrancado à força.
Será que estava destinado a perder tudo aquilo que tocava? Tudo aquilo que lhe pertencia?
Será que era amaldiçoado pela infelicidade?
Então estava decido a não tocá-la, a não tê-la, assim ele nunca a perderia, nunca teria que esquecer o sabor depois de prová-lo, nunca teria que sofrer por perder algo que já tivera, mais uma vez.
Seria diferente. Ele não a faria sofrer, fazendo com que ela se apaixonasse por ele, um amor impossível com todas as letras.
Ele era o único que teria que viver e esquecer a sensação de que ela havia nascido para ele, nascido para trazer a felicidade que ele já não tinha há tanto tempo, de que ela era o “bem” do mundo dele. A paz.
Ele iria viver com a dor como sempre vivera, até se esquecer de como dói, esquecer dos machucados que não podem ser vistos, esquecer a pureza do sorriso dela e o bater de seu coração.
Ele viveria nesse mundo de cinzas para que ela não se queimasse como ele já estava queimado.
Marcado.
Sujo.
Almadiçoado.
Morto.
Ela viveria e esqueceria dele.
UM
Ninguém deveria prestar atenção em um homem vestido com um longo casaco preto e andando de cabeça baixa pelas ruas douradas de Florença, mas com ele era diferente, sempre foi.
Seu cabelo loiro que batia nos ombros e seu rosto bonito demais para ser justo em pertencer a um homem chamava atenção. Atenção de todos, tanto de mulheres quanto de homens.
Matteo Bonamicci queria estremecer diante desses olhares, mas nem isso conseguiu. Seu maldito rosto bonito e essa aura de pureza e luxúria que emanava dele sempre fez com que se destacasse, mesmo quando não passava de um menino, com seus quatorze anos...
Se não fosse por seu belo rosto nunca teria sido sequestrado por aquele homem e nunca iria para Milosh. Nunca teria se transformado em um vampiro e não teria vivido longe da família que tanto amava.
Como sentia falta de suas três irmãos mais velhas... De seus cabelos soltos brilhando ao sol e de seus olhos azuis... Elas eram tão belas. Elas eram anjos... Os anjos de Matteo. Era assim como se sentia, vivendo no céu...
E sentia falta de seu irmão também, Rafaelo. Rafaelo com sua voz grossa e cabelo escuro. Rafaelo que sempre impôs medo e respeito em casa, depois que os pais dos meninos morreram em uma horrível gripe.
Matteo ainda podia cheirar a doença que levou seus pais, como se estivesse de novo dentro daquela pequena casa no campo...
Tinha apenas seis anos quando a gripe matou Alessandro e Estefana Bonamicci e depois disso foi criado por suas belas irmãs e por seu responsável irmão. Ele era o caçula, o favorito de todos, o anjinho entre tantos anjos.
Anjos devem ser puros, não devem? O que pensariam dele agora? Ele era sujo demais para ser um anjo. Impuro. Sujo. Manchado.
Matteo balançou a cabeça e continuou andando sem rumo. Voltar para Itália tinha sido uma ideia que o atormentou desde que fora levado embora, mas agora ele não tinha nada mais que o segurasse no outro lado do oceano. Não era mais prisioneiro de um vampiro pervertido, não era mais um Líder de um Clã poderoso... Ele não era mais nada além de um vampiro que sentia falta de casa.
Casa.
Milosh nunca fora exatamente sua casa, mesmo com as décadas que viveu no clã simples, nem quando ele era o Dono dessa casa. Ele sempre quisera voltar. Sempre.
Para aquele pequeno vilarejo perto de Florença, interior de sua amada Itália...
Sentia falta do calor que fazia no país em agosto e o frio de bater dentes que fazia em janeiro, ou as chuvas de dezembro que parecem intermináveis... Não que o clima fosse fazer alguma coisa com o seu corpo morto agora, mas não era isso que importava. Era a sensação de estar em casa. De cheirar as flores, de cheirar o aroma do molho de tomate e da massa de pão, dos barulhos...
Crianças gritando e correndo para todos os lados, mulheres que riam alto sem se importar com isso, homens que falavam gesticulando mais do que era necessário, cachorros latindo e choramingando por um pedaço de linguiça...
E sentia muita, muita falta de sua família. Sabia que agora Rafaelo, Catarina e Francesca já estavam mortos, apenas Paola estava viva, com seus oitenta e três anos, vivendo numa cama de hospital, tendo apenas momentos de lucidez antes que as memórias se misturassem em sua mente. Vivia assim desde ter tido um derrame há três anos. Mas a família Bonamicci tinha tido um legado, filhos e netos e bisnetos vivendo por aí... Pessoas de seu próprio sangue, pessoas que Matteo queria e iria conhecer.
Queria muito poder ver Leonardo, o filho mais novo de Rafaelo, o sobrinho que Matteo embalou em seus braços de menino, o sobrinho que tinha o mesmo cabelo escuro do pai, mas os olhos tão claros quanto os olhos de todos os Bonamicci.
De todos os sobrinhos que suas irmãs mais velhas e seu irmão lhe deram, Matteo tinha um carinho especial por Leonardo. Talvez por tê-lo visto nascer, por tê-lo segurado já que era grande o suficiente para isso... Leonardo mal tinha completado três anos quando Matteo foi embora. Foi levado embora.
Mas Leonardo não estava mais vivo e o desejo de Matteo de vê-lo não se realizaria. Quão injusto o mundo consegue ser? Não apenas por ele não poder ver seu sobrinho, mas por Leonardo ter sido uma criança, um adolescente, um homem... Um idoso e morrer.
Era injusto demais sentir inveja disso?
Pois Matteo se sentia invejoso do sobrinho favorito e se odiava por isso.
Enquanto ele beirava os cem anos, seu sobrinho morreu antes de chegar aos setenta. Queria tanto poder ter uma poção mágica para dar a todos aqueles que amava, para que vivessem para sempre...
Mas daí voltava para aquela coisa de "mundo injusto". Como ele poderia decidir quem vivia e quem morria?
Bom, era Deus quem cuidava disso, não é?
"Então, Deus" pensou Matteo "Por que eu estou vivo e eles não? Por que eu mereço a benção da vida e eles não? O que eu fiz para ser tão de especial?"
Claro que Matteo não teve resposta.
Deus abandonou aos vampiros, esses seres que vendem sua alma para a noite e ganham a solidão da eternidade como castigo. Deus os abandonou para que aprendessem a dura lição de que “uma vida por outra vida” não é maneira de viver. Eles sabem, os vampiros, que estão condenados a isso. Ah, eles sabem, mas não se importam o suficiente para morrer, por isso são imortais.
Matteo tinha um plano já posto em marcha desde que colocara um pé na Itália: alugou uma casa em seu vilarejo e viveria ali por um tempo. Faria amizade com seus parentes desconhecidos e tentaria esconder de todos o que era, quem era e esconder, principalmente, como se alimentava.
Alimentação era algo importante que ele não podia deixar de lado ou não pensar. Na verdade, para um vampiro, pensar em como irá se alimentar enquanto vive entre os humanos é a primeira coisa que eles tem que pensar.
Matteo era um Líder, mesmo sem clã, ele era um Líder, tinha seus poderes e seus privilégios de Líder, como poder caçar em qualquer território sem ter que se apresentar ao Líder mais próximo de onde se encontrava.
Mas Matteo não teria coragem, ele sabia, de se alimentar de alguém do povoado, de algum neto ou neta de pessoas que ele brincou quando criança ou de um bisneto de alguém que deu pão para sua família quando as coisas estavam difíceis.
Teria que viajar, percebeu, toda noite para se alimentar em uma cidade maior, nem que isso custasse boas horas do tempo que planejava passar ao lado de sua família.
Mesmo que os Bonamicci nunca soubessem quem ele era, tudo que ele queria era momentos ao lado deles, ouvir suas vozes, sentir seus cheiros e se sentir próximo de tudo aquilo que havia perdido, ser um amigo querido ou um amigável vizinho novo, um cara sortudo importante o suficiente para ser presenteado com um ou dois sorrisos.
Em comparação a alimentação ou a qualquer outra coisa, esses momentos e sorrisos que, um dia também seriam seus, eram muito mais importantes e vitais para ele do que sangue.
Era hora de parar de devanear e se mexer. Andando um pouco mais rápido, não tanto quanto de fato gostaria, Matteo se dirigiu até uma concessionária.
Ele não seria muito bem visto se chegasse a sua cidade em um carro roubado, apesar de ser engraçado e Matteo nunca gostou dessa coisa de roubar e enganar, como a maioria dos vampiros que acha mais fácil simplesmente entrar um carro e sair andando por aí. Sim, ele tinha que admitir que era bem mais fácil do que gastar duas ou três horas até comprar um carro, mas pelo menos não chamaria a atenção se parasse em frente a um carro que achasse atraente e fazer seu dono entregar as chaves em troca de um sorriso sedutor e brilhante.
-Vai alugar ou comprar? – perguntou o vendedor de maneira animada e Matteo quis abraçá-lo apenas por falar italiano, cheirar a italiano, ser italiano.
“Se vai passar mais de um mês, eu aconselho você a comprar. Vai ficar quanto tempo?”
Enquanto o vendedor falava e falava das vantagens e das desvantagens de alugar ou comprar um carro, Matteo pensou: Quanto tempo ficarei aqui, no meu mundo, na minha terra, na minha família?
Para sempre quis dizer, mas tudo que respondeu quando o vendedor perguntou novamente foi:
-Não sei, mas pretendo ficar tempo suficiente.
-Suficiente pra quê? – perguntou o homem curioso.
-Para ser feliz. Acha que eu consigo?
Pensando que Matteo estava falando de mulheres, o vendedor riu tanto que ficou com seu rechonchudo rosto ainda mais vermelho do que já era como se ele tivesse dito algo surpreendentemente inteligente e engraçado e deu uns tapinhas nas costas de Matteo. Tapinhas que derrubariam a um homem normal, mas ele apenas se forçou a balançar para não parecer forte demais.
-Ah, meu caro – disse o vendedor secando um lágrima que havia caído em seu ataque de riso – Se o que você quer é ser feliz, você está no lugar certo.
Dentro de um carro confortável e veloz apesar de não ser um bem moderno algumas horas mais tarde, Matteo acelerou para sua nova vida e sentiu que o vendedor com sua risada fácil – falsa e exagerada como todo vendedor de carros – tinha razão:
Matteo estava no lugar certo para ser feliz.